Vai-o-Vento

               Durante minha pesquisa de mestrado , investiguei de que forma os elementos presentes na prática da arte marcial indiana Kalarippayatt poderiam ser transpostos para o fazer cênico. Estes elementos eram muitos, desde a própria fisicalidade da luta até o estado de consciência dilatada que a prática promove.
               Chegado um determinado momento, houve a necessidade de efetivar esta transposição: o desenvolvimento de um processo criativo .
               Era hora de caminhar sobre os próprios pés imaginativos e criativos, de descobrir-se na solidão do espaço e permitir que todos aqueles elementos reverberassem em mim.
             Se, por um lado existia, uma vez mais, a sensação de abandono, por outro, um vasto oceano se abriu.
            Eram peças soltas, momentos nascidos a partir da prática do Kalarippayatt em que a liberdade era-me oferecida e as matrizes corporais e vocais conhecidas e muitas vezes escondidas, se manifestavam.
            Os objetos com os quais interagia também haviam sido trazidos intuitivamente, a partir de imagens surgidas na liberdade expressiva que o corpo conquistava pouco a pouco.
            Segui viagem, tentando não me contaminar de pré-conceitos que pudessem impedir ou sabotar aquela saborosa descoberta, acreditando que no momento correto seriam reveladas, se necessárias, as respostas para aquelas e outras tantas perguntas.
            Eu, brincante daquilo tudo, não havia me preocupado em criar estruturas.
            O maior interesse estava em perceber, através de todos os níveis que me eram permitidos: emocional, fisica, mental, intuitiva e energeticamente, de que forma essas energias me transpassavam e me transformavam. Desvendar caminhos que me possibilitassem reencontrá-las, uma vez que o surgimento daqueles estados diferenciados dava-se, em grande parte, espontaneamente.
            Fui aproximando-me de elementos que me acompanhassem na jornada: mitos, canções tradicionais iorubanas e indianas, histórias ouvidas aqui e acolá.
            Na companhia destes novos (velhos) parceiros, procurei a centelha que me guiaria e me prepararia para a recepção de tudo o que de mim brotava, invadindo-me, em um movimento constante de troca entre o mundo interno e a ação materializada no espaço.
            Dei-me conta de que muitos mitos indianos lembravam-me as histórias procedentes do panteão iorubá, e vice-versa.
            Foram identificados, para orientar o trabalho, os seguintes pontos de diálogo entre elas:
-       Elementos arquetípicos presentes na narrativa
-       Funções simbólicas – a narrativa em si
-       Corporeidades
            Teve início o transitar através de imagens, texturas, cores, sabores.
Neste momento do trabalho, senti a necessidade de estar na presença de VOZES. Convidei para essa prosa o músico e percussionista Fábio Andrade, companheiro também de outros caminhares.
            Na prática das artes da cena tradicionais indianas, e também nas manifestações espetaculares populares da cultura brasileira, a música tem um papel bastante importante e bem claro. Ela é sempre executada ao vivo, de maneira dinâmica, dialogando com as ações realizadas pelos brincantes. É elemento vivo, e, por isso, também responsável pela instauração e manutenção das outras realidades que o ato cênico cria. Em nenhum caso, ela tem um caráter ilustrativo, criando pseudoclimas, muito pelo contrário, ela é determinante e indispensável para a ação da qual faz parte. Ela pontua as ações realizadas em cena, dialoga com elas. Atua concomitantemente com o resto de ações.
            Exatamente neste sentido é que trouxemos a proposta de integrar música na ação cênica. Experimentamos dialogar com ela.
            Os ritmos aportados ao trabalho pertencem ao universo da cultura popular brasileira, mais especificamente toques de diferentes nações de Maracatu.  Além disso, abrimos espaço para que outros sons pudessem, se assim fosse necessário, encontrar lugar. Tínhamos apitos, maracas, tubos de plástico e um violão.
            Jogamos. Encontramo-nos e desencontramo-nos, em uma rica e frutífera experiência, em busca de que “tudo que é visível (que tem corpo) deve ser sonoro (encontrar sua voz) e tudo que é sonoro (que tem uma voz) deve ser visível (encontrar seu corpo)” ( BARBA, 1991, p. 80).
            O processo criativo se desenvolvia: a abertura de caminhos, o universo feminino e suas lutas e a interação disso tudo com elementos sonoros.
            Cada vez mais o trabalho revelava-me, tornando-se autobiográfico: questões profundas eram trazidas à tona e levadas à poética cênica. Caminhos se cruzavam a partir das mitologias. Encontrava-me nessa encruzilhada de histórias. Mantras que cantam a Iansã, ventos que movem Ganga.


            Em outubro deste ano (2014) foi realizado um ensaio aberto deste processo durante minha defesa de mestrado na UNICAMP. E com o ensaio aberto o desejo e a certeza de permitir que o que antes era uma possibilidade se torne realidade. Assim, com base em todo o processo desenvolvido nos último ano, nos preparamos para voar o ano próximo, com as asas abertas e em caída livre, junto ao espetáculo Vai-o-Vento.





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